Simultaneidade esquecida

Matheus Bazzo
4 min readFeb 24, 2023

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A maior parte das nossas dificuldades de compreensão — seja dos acontecimentos históricos, seja de questões pessoais e até mesmo de questões filosóficas — nascem pela nossa incapacidade de conceber a simultaneidade de todas as coisas.

Uma pergunta muito comum em todas as fazes da nossa vida é: eu devo mudar ou não devo mudar? Se devo mudar, o que devo mudar e em qual intensidade devo mudar? A pergunta é difícil e quase sempre se apresenta de forma vital: “eu preciso mudar minha vida o quanto antes”. Muitas vezes a pergunta surge apontando para o exterior: “eu preciso mudar o mundo”.

Mas raramente essa pergunta leva em consideração uma outra pergunta: o que eu não devo mudar? O que em mim deve permanecer?

Na transição da infância para adolescência e para a fase adulta, esse é um dos questionamentos mais comuns. Até que ponto devo deixar de ser uma criança e até que ponto devo deixar viver em mim uma criança interior?

Quando encarados de maneira impaciente — ou até mesmo desesperada — esses questionamentos podem levar a respostas trágicas. Nenhum ser humano pode mudar-se por inteiro. Assim como nenhum ser humano pode materialmente mudar o mundo. O desejo pela súbita alteração da nossa pessoa ou do universo em que estamos inseridos leva sempre à violência e a algum tipo de morte. Há partes do meu ser que não deveriam ser forçadas a mudar pois são frutos do Espírito Santo em mim — frutos os quais posso estar ignorando pela sanha de tomar controle da minha pessoa. Há partes do meu ser que precisam mudar, mas num grau sobre o qual não posso mensurar.

A atitude meditativa perante si mesmo se faz necessária para remediar nossa incapacidade de compreender essa profunda simultaneidade. A simultaneidade que me refiro é a capacidade de perceber o desenlace de todas as coisas em seu devido tempo e na sua devida proporção. A simultaneidade total é a visão da eternidade. É aquele estatuto do ser onde é possível ter uma visão estática de todo devir. Compreende-se a origem, o desenvolvimento e o fim das coisas em todos seus estágios simultâneos.

Por óbvio nós seres humanos e imortais não temos essa visão holística de todas as coisas. Essa é a visão de Deus, só Ele concebe as coisas desse jeito. E por não termos essa visão, acabamos desejando mudanças que estão fora do quadro da ordem natural dos acontecimentos. É por isso que Deus cria regras, ordens, dogmas, etc. Porque somos incapazes de compreender todos os desenlaces e precisamos de uma “dica” a respeito do que deve e do que não deve entrar para a realidade dos acontecimentos.

Devemos sempre ter em mente nossa incapacidade de conceber o todo. É dessa visão segregada da realidade que brotam muitas incompreensões. As ideologias se alimentam dessa nossa deficiência. Uma visão ideológica é sempre uma visão que procura explicar o todo levando em consideração somente uma parte. A primeira frase do Manifesto Comunista sacramenta esse crime: a história da humanidade é a história da luta de classes. Pega-se um aspecto da vida humana — a eventual luta de classes — e a posiciona como elemento estruturante de toda a realidade.

Há erros filosóficos que podem ser compreendidos a partir dessa limitação. Quando Nietzche postula que tudo é um eterno devir, ele ignora a constância de tantas coisas. Inclusive da própria verdade que ele deseja comunicar. O relativismo radical é também fruto de uma vista recortada da realidade. Curiosamente o relativista se posiciona como alguém detentor de uma visão mais abrangente que foge de conclusões eternas. Na verdade, o relativista está captando o dado mais básico da realidade — a saber: o de que as coisas mudam constantemente — e explicando o todo a partir dele.

Em certa medida, todo pecado deriva dessa incompreensão. Se tivéssemos consciência da totalidade das consequência de nossos pensamentos e atos, iríamos evitar todos aqueles que levassem ao mal. Mas somos limitados e frágeis e ignoramos (por culpa nossa!) todas as consequências de nossos atos.

É por isso que devemos orar sem cessar. Porque precisamos da presença e do guiamento constante dAquele que concebe tudo. A chave, portanto, para responder a todas as nossas perguntas começa com a oração. Orando, garantimos a abertura para a ação de Deus em nossa vida para que não cometemos nenhuma violência ou injustiça contra o próximo e contra nós mesmos. A oração garante que não ignoremos a inabarcável simultaneidade de todas as coisas nos aproximando de uma postura mais conformada com a realidade. A oração nos aproxima do real e com isso nos oferece um chão sólido para que possamos decidir em que medida devemos mudar a nossa vida e a vida dos que estão à nossa volta. O início de toda a caridade e de todo conhecimento deve levar em consideração a oração.

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Matheus Bazzo

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